O que se espera curar nos dias de hoje?
Nos dias de hoje, a demanda de cura frequentemente se associa a uma eliminação rápida e eficiente dos sintomas, permitindo que as pessoas voltem a suas atividades o mais rápido possível. Esta abordagem se alinha com a lógica de produtividade do capitalismo, onde o tempo é um recurso valioso e os indivíduos são vistos como engrenagens de uma máquina maior.
O filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin, continua extremamente atual. Mesmo sendo um filme mudo, ele questiona a dinâmica industrial das linhas de produção, a mecanização dos indivíduos e a eliminação das subjetividades em busca de um resultado “eficiente e harmonioso”. Essa lógica industrial, essencial ao capitalismo, se espalhou além das fábricas e agora permeia todos os aspectos da vida moderna.
Hoje, vivemos essa dinâmica em nosso cotidiano. Estamos sempre com pressa, buscando cumprir metas produtivas. Nossas relações também foram afetadas, tratamos uns aos outros como peças substituíveis e nossos vínculos se tornaram fluidos. Quando adoecemos, esperamos soluções rápidas, como se fôssemos máquinas que precisam apenas de alguns ajustes para voltar a funcionar.
A psicanálise é chamada a responder a essa demanda de cura, oferecendo um espaço para refletir sobre essas pressões e buscar uma compreensão mais profunda de nós mesmos em meio a essa realidade mecanizada.
A psicanálise subversiva: na contramão da demanda de cura
Em um mundo que exige cada vez mais produção no menor tempo possível, os diagnósticos deixaram de ser “ferramentas para se entender um caso” e se tornaram “etiquetas” que determinam quais medicamentos podem suprimir ou aliviar os desconfortos dos sintomas. Terapias breves e focais também se encaixam nessa lógica, promovendo rápidas modificações de comportamento, como se fossem ajustes para devolver as “máquinas orgânicas” ao seu funcionamento normal. Protocolos frios, objetivos e compartimentados substituem a investigação qualitativa e subjetiva, considerados demorados demais.
O DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) reflete essa realidade ao definir um “comportamento normal” e, qualquer desvio, é visto como patológico e precisa ser curado ou eliminado. Não há espaço para ouvir o sintoma, que se tornou indesejado. A única doença possível é uma espécie de “normose”, onde o indivíduo ideal é alto, magro, alegre, sociável, bem-sucedido, possui os dispositivos eletrônicos mais modernos e consome algum psicotrópico, afinal, ninguém é de ferro.
Diante desse cenário, a Psicanálise deve persistir na contramão dessa lógica capitalista para continuar existindo. O papel do psicanalista é garantir que a Psicanálise falhe em atender essa demanda moderna de “cura” como uma simples eliminação ou supressão de sintomas. Afinal, o sintoma é uma solução, não um problema.
Vamos analisar mais adiante dois pontos: a função do sintoma e a cura na visão da Psicanálise. Mas, antes de tudo…
Antes de tudo, é preciso escutar…
Na psicanálise, não se investiga com base em um protocolo. Diante do paciente, o psicanalista nada sabe! É preciso escutar! E essa escuta exige tempo, pois é o paciente quem possui o conhecimento sobre si mesmo. Cada caso é único e singular. Para que essa singularidade apareça, é necessário que o “diagnóstico tatuado na pele” caia, abrindo espaço para a criação de algo novo e particular.
Essa é uma inversão essencial proposta por Lacan, que retomou ao que era fundamental em Freud. Foi essa abordagem que permitiu alcançar as pacientes histéricas: não se colocando no lugar de mestre, aquele que detém o saber sobre elas, mas sim, no lugar daquele que escuta. O paciente é convidado a ser paciente e a se desvencilhar da lógica capitalista, do aceleramento, do mundo online e FALAR SOBRE SI.
Esse é o método psicanalítico: acreditar que através da fala algo do sujeito irá emergir.
A função do sintoma
Souto1 define que aquele que procura análise para curar o problema do sintoma nutre a crença de que há um sentido que pode ser decifrado e, logo que se decifre, o sintoma desapareceria – como defendido inicialmente por Freud. Entretanto, algo do sintoma sempre resiste, tem algo que se repete e que demonstra um modo de gozo. Ou seja, uma forma de satisfação própria a cada um. O que era um ‘problema’ é, na realidade, uma solução única de cada sujeito para lidar com o real.
O sintoma não é a doença em si, mas uma tentativa mal ajustada e incômoda de enfrentar o insuportável, a falta de sentido. Por ser uma solução para lidar com o real, o sintoma tem algo de incurável, pois não podemos simplesmente eliminá-lo.
Portanto, o sintoma representa a particularidade de cada sujeito que a modernidade tenta eliminar. Como define Sauvagnat, o sintoma é a “escrita secreta da pessoa”2 que pode mudar dentro de um processo analítico. Essa mudança, que preserva algo da criatividade do indivíduo, é o que a Psicanálise entende como cura.
O sentido da cura
O caminho difícil é o paciente enxergar o seu próprio gozo. E, para tal acontecer, o psicanalista se propõe a incomodar. A posição do analista incomoda as defesas. Não está ai para ajudar o paciente a eliminar o sintoma, mas para incomodá-lo ao ponto de fazê-lo mudar. Seja com as intervenções, seja com seu silêncio, seja com o pagamento. Por isso não funcionamos na lógica da empatia, “eu te entendo, vai ficar tudo bem”. Mas, funcionamos na lógica contrária: “Eu não te entendo, fale-me mais sobre isso”.
A partir dai o paciente consegue elaborar uma nova questão. Questão esta que passa de “Porque comigo?” para “Em quê eu tenho a ver com meu sofrimento?”. Muda seu posicionamento sobre o sintoma e pode aparecer como sujeito. Existe uma responsabilidade em ser sujeito. Um sujeito tem o seu gozo, ou seja, obtém sua satisfação disso que ele se queixa. Quando o paciente sai do discurso de “O mundo me odeia”, é ai que a análise começa a caminhar no sentido da cura psicanalítica.
O sentido da cura para a Psicanálise não é, portanto, lobotomizar o paciente! Não há nada a se extirpar do psíquico. Também, não se busca ‘apertar parafusos’ e fazer funcionar numa lógica utilitarista. Mas sim “escutar a novidade do sintoma, a solução que o sintoma traz e qual pode ser a sua invenção”(1), para assim, inventar um jeito melhor de não funcionar ou suportar o que não funciona, para tentar fracassar de um jeito melhor.
Créditos e Referências Bibliográficas:
- SOUTO, S.O., “Como a psicanálise cura”.
- SAUVAGNAT, F., Conferência “A prática clínica na atualidade”.
CompARTilhe arte
Filme: “Tempos Modernos“
Lançamento: 25 de fevereiro de 1936
Diretor: Charlie Chaplin Mais sobre
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Autoria do texto
Júlia Maria Alves
Psicóloga graduada pela UFMG (2009), com especialização em Clínica Psicanalítica na atualidade pela PUC-MG (2021) e em Gestão de Pessoas pela Fundação Dom Cabral (2012). Atua com atendimento clínico e orientação profissional e gestão de carreira.