Clube do livro: “Véspera” | Parte 2
Somos capazes de tudo? Em que momento e como cruzamos a linha do extremo? O livro “Véspera” de Carla Madeira começa justamente com essa pergunta: “Como se chega ao extremo?”
Hoje vamos explorar um pouco mais esse tema: as atitudes extremas, seus impactos e suas consequências. E já de início, podemos refletir que, independentemente do caminho percorrido para se chegar a esse ponto, há sempre uma parada em comum: um instante em que algum tipo de violência irrompe.
“A descida até o lugar onde somos capazes de tudo é, por vezes, um desmoronamento lento misturado à banalidade dos dias. Ou abrupta avalanche”.
Como se chega ao extremo?
Extremo significa “o mais afastado, o mais remoto ou muito intenso, o máximo”.
A obra de Carla Madeira é permeada por atitudes extremas e impulsivas. Alguns exemplos marcantes incluem: o pai que registra os filhos com nomes errados apenas para provocar a esposa; o jovem que, em busca de sentir-se vivo, se joga de alturas, arriscando a própria vida; um homem que, desejando uma mulher proibida, tenta forçar seu afeto; e a mãe que abandona temporariamente o filho que a irrita.
Quando olhamos para as atitudes extremas presentes no livro, inicialmente as percebemos como muito distantes de nossa realidade, quase improváveis de acontecer em nossas vidas. Mas, logo em seguida, surge um incômodo: a constatação de quão humanas essas atitudes realmente são. Isso nos faz perceber que, enquanto seres humanos, todos corremos o risco de cair nesses extremos.
Isso nos leva a questionar: quanto de agressividade existe em nós? Somos capazes de tudo, até mesmo dos extremos? Poderíamos fazer aquilo que mais nos repulsa e apavora? Não sabemos até que ponto nossa história pessoal ou nossa constituição psíquica nos protegeriam de alcançar esses extremos. Isso também nos remete à ideia do “medo de si próprio”—o medo do que somos capazes de fazer.
Em resumo, é profundamente desconcertante pensar que aquilo que acreditamos estar mais distante de nós, algo que repudiamos, ainda pode estar ao nosso alcance com apenas um ato impulsivo, em um único instante. E, por mais que nos cause repúdio, podemos, em um instante impensado, cometer um ato de violência contra o outro. Podemos explodir em ira, gritar, agredir, agir sem pensar, quebrar pactos, abandonar, entre outros comportamentos.
Então, repito a pergunta que o livro nos faz: como cruzamos a linha entre o sensato e o extremo?
… se chega lá vivendo
A resposta proposta pela autora é simples e direta: chegamos ao extremo vivendo. Essa simplicidade já indica o quão próxima pode ser essa passagem. Cada um de nós corre o risco de cair nesse extremo, pois estamos constantemente convocados a responder ao mundo e aos seus acontecimentos. Vivemos o tempo todo confrontados com nossos desejos e medos, em embates internos entre forças contrárias, ou somos forçados a suportar, esconder e camuflar sentimentos, dores e frustrações.
Assim como no livro, em nosso cotidiano enfrentamos situações tensas que nos demandam muito emocional e psicologicamente. Nessa tensão constante, estamos mais próximos de atitudes explosivas que podem surgir em um segundo, em um breve instante de desatenção. Esse momento pode abrir espaço para um ato que deixa uma marca irreparável, talvez até um trauma.
Um instante x A véspera
Pensar na possibilidade de uma passagem ao ato impulsivo pode ser angustiante. Isso sugere que talvez não tenhamos controle total sobre nossos atos. Seria possível que chegássemos a atitudes que estão além do que julgamos ser capazes de fazer?
A resposta que podemos extrair do livro é mais complexa do que um simples “sim”. Para aliviar a angústia mencionada, é importante considerar que, embora um instante possa ser suficiente para o ato impulsivo ocorrer, são as vésperas que definem a possibilidade e criam o cenário para que isso aconteça de fato. Há uma construção do ato impulsivo.
Vedina se pergunta: “Será que foi aqui que comecei a abandonar Augusto?“
Assim, o ato extremo não surge de um instante impensado, mas ao contrário, ele se desenvolve a partir da soma de eventos que ocorrem nas vésperas, culminando no ato citado. É justamente nas vésperas que encontramos as raízes do que estamos vivendo hoje. Algo vai se construindo ao longo do tempo e desemboca em um ato extremo, que é como um corte naquilo que tem sido suportado ou ignorado há tempos. É uma ruptura violenta do comportamento “esperado”, similar à explosão de um vulcão.
O vulcão
É interessante fazer um paralelo com a capa do livro: uma fotografia da lava de um vulcão transbordando. Seguindo o raciocínio acima, essa imagem pode ser vista como uma metáfora para a ruptura com o esperado causada pelo ato extremo. Assim como a explosão de um vulcão, que abala tudo ao seu redor, o extremo perturba e transforma a estabilidade aparente.
Além dessa metáfora, o vulcão pode ser compreendido como, por exemplo: a lava como uma metáfora para emoções reprimidas que, uma vez liberadas, têm o poder de destruir as estruturas da vida cotidiana. Ou, ainda, o vulcão pode representar o acúmulo de tensão e frustração que, quando finalmente chega ao ponto de ruptura, resulta em uma explosão de comportamento extremo. Ainda podemos associar com a sexualidade de Abel, especialmente com a presença marcante da sexualidade que irrompe em atos violentos.
“O Vulcão é uma estrutura geológica criada quando o magma, gases e partículas quentes (como cinzas) escapam para a superfície terrestre.“
O vulcão é o corpo que continha aquilo que estava submerso, escondido, mas faz uma enorme pressão para vir à superfície. Tamanha a tensão, explode violentamente, impedindo qualquer defesa diante da sua força. Como um ato violento que vinha sido contido, mas irrompe, marca e causa um trauma. A lava vulcânica, assim como o extremo, é isso que irrompe a barreira, escapa e segue destruindo o que toca.
Sob outro ponto de vista, podemos pensar como uma metáfora para o clima de tensão ao longo da narrativa. Assim como a tensão que sentimos quando estamos prestes a cruzar a linha do extremo. Ou a tensão presente em cada escolha que fazemos ou em cada vez que nos anulamos.
O abandono
O abandono e o desamor permeiam toda a história de Vedina. Ela é profundamente marcada pelo abandono de seus pais e por um casamento desastroso e frustrante, no qual seu marido a deixa constantemente. Essa sequência de abandonos, como discutido anteriormente, tem consequências significativas. Ela afeta diretamente a capacidade de Vedina de acolher seu filho e exercer a maternidade. Em um ato impulsivo, ela abandona o filho na calçada, repetindo o abandono que sofreu tantas vezes ao longo da vida. Ela abandona o filho não apenas por não conseguir deixar o marido, de quem tanto desejava o afeto, mas também como um reflexo do abandono que sempre sofreu.
A narrativa continua explorando as culpas, dores e os efeitos de seu ato, cheia de questionamentos sobre o momento em que ela começou a abandonar o filho.
Claudia Pretti [3] pontua sobre o livro que “O ato impulsivo de Vedina ilustra, para além do real da perda, a possibilidade de que uma mãe abandone um filho, e ainda que o abandono pode se dar também no nível simbólico, mesmo que no interior de uma família constituída dentro dos moldes patriarcais tradicionais.”. Isso nos faz pensar no poder de um sujeito diante do outro, o poder de um pai em nomear um filho ou de abandonar uma criança.
A culpa
No entanto, essa explosão ou atitude extrema não vem sem um preço. Às vezes, as consequências desses atos extremos são externas a nós: podem ser jurídicas, como no caso de crimes e violências, ou sociais, resultando em trauma, ruptura, mágoa, ou uma marca irreparável nas relações.
Outras vezes, as consequências são internas e acredito que essas sejam especialmente dolorosas do ponto de vista dos sujeitos. Carregamos marcas e culpas por toda a vida, muitas vezes até encontrar algum tipo de perdão. E essa culpa nos aprisiona sem piedade. Nas palavras da própria autora:
“Não há confins no mundo onde possamos nos esconder dos nossos próprios olhos. Do que sabemos que fizemos, do que deixamos de fazer, do que sentimos que deveríamos ter feito. Do que somos capazes. A culpa é uma presença sem trégua. (…) Não há como fugir dos olhos vigilantes que estão dentro de nós”.[2]
Continua …
No próximo texto falaremos sobre as nossas vésperas e como elas se fazem presentes.
- 1) Sobre o livro: “Véspera” Carla Madeira (03/11/22).
- 2) Como se chega aos extremos? Vivendo! / Abandono, violência e trauma. (10/11/22).
- 3) A história prévia que nos constitui / Nomeação simbólica. (17/11/22).
- 4) A mulher, mãe, dona de casa e a trabalhadora cansada. (24/11/22).
Referências
Veja outros livros, filmes e séries com a temática de relações conturbadas entre irmãos gêmeos:
- “Game of Thrones“: Série / Drama (2011).
- “Esaú e Jacó“, Machado de Assis. Livro / Romance (1904). Disponível aqui
- “Gêmeos – Mórbida Semelhança“. Filme / Terror/Thriller (1988).
- “As gêmeas” em “A vida como ela é“, Nelson Rodrigues. Contos (1992). Disponível aqui
- “A comédia dos erros” – Shakespeare. Livro / Teatro inglês (1564). Disponível aqui
- “A consciência” em “Vozes interiores“, Victor Hugo (1837).
Referências para o artigo:
- Livro: VÉSPERA – Romance. Autora: Carla Madeira. Editora: Record. 280 páginas. Disponível aqui
- Entrevista Carla Madeira. Disponível aqui
- IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
Imagens:
- “Imagem capa Atitudes extremas
- Edição: Equipe Diálogo Psi
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Autoria do texto
Júlia Maria Alves
Psicóloga graduada pela UFMG (2009), com especialização em Clínica Psicanalítica na atualidade pela PUC-MG (2021) e em Gestão de Pessoas pela Fundação Dom Cabral (2012). Atua com atendimento clínico e orientação profissional e gestão de carreira.