Hoje, quero falar sobre o filme Flow (2024, Letônia). Essa animação brilhante conquistou os prêmios de Melhor Animação tanto no Globo de Ouro quanto no Oscar. Repleto de simbologias sutis e reflexões profundas, oferece uma experiência única. Diante de tanta riqueza em seu conteúdo, este filme convida o espectador a refletir sobre o fluxo incessante da vida e a relação com o diferente.
>> A sinopse e o trailer estão no final do texto.
Reflexões sobre o filme
Preciso confessar que chorei por um longo tempo até conseguir digerir a história e compreender exatamente onde ela havia me tocado. Muitas coisas me chamaram a atenção no filme, mas, para manter o texto breve, escolhi focar na relação com o outro — o diferente de mim — e com o novo.
Um mundo confuso
No filme, o gatinho vivia em uma casa feita sob medida para ele, totalmente baseada em sua imagem e semelhança, um ambiente confortável e seguro: Sua bolha. No entanto, como acontece na vida, um evento inesperado o arranca violentamente desse conforto, lançando-o num mundo confuso, para se confrontar com o diferente.
O encontro com a diferença é sempre um momento de ruptura. Ele nos desafia, nos tira da ilusão de controle e nos obriga a lidar com o inesperado. É um convite à transformação. Lidar com as diferenças pode deixar tudo muito confuso e assustador, pois nos tira da segurança do que já conhecemos.
Nesse primeiro encontro, o diferente nos parece pior, a primeira reação é de resistência, como se preservar nossa identidade exigisse afastar ou anular o outro. O gatinho, por exemplo, nos primeiros momentos – na enchente e já dentro do barco – demonstra sentimentos de medo, desconfiança e fuga. No entanto, é diante desses outros modos de ser, pensar e sentir que ampliamos nossa visão de mundo e a transformação acontece.
Aceitar a interdependência
Quem convive com gato sabe bem de sua personalidade mais independente, por vezes arredia e até egoísta. Os felinos costumam lidar muito bem com a solitude. Logo, essa jornada para o gatinho de Flow é uma transição árdua, que o ensina a se relacionar e desenvolver compaixão e tolerância.
Quando nos abrimos para a alteridade sem a necessidade de controle ou domínio, não apenas reconhecemos o outro como ele é, mas também nos transformamos no processo. A diferença, longe de ser uma ameaça, torna-se uma possibilidade. Aprendemos a acolher o novo, em vez de temê-lo. O gatinho de Flow inicialmente resiste à mudança preso na estátua de si mesmo, até perceber que não pode atravessar sua jornada sozinho e se joga nas águas para entrar no barquinho.
Abraçar o Flow (fluxo/fluidez da vida)
Em sua jornada, o gatinho descobriu que não pode sobreviver sozinho e, mais do que isso, que não quer viver sozinho — logo ele, o gato, que sempre fingiu não precisar de ninguém!
E, quando menos percebemos, aquele gatinho antes egoísta, desconfiado e arredio agora se mostra carinhoso, demonstrando compaixão até por aqueles que antes via como inimigos. Ele se coloca em risco para proteger e permanecer ao lado daqueles que aprendeu a amar. Agora, ignorando seus próprios instintos, lance-se na correnteza sem hesitar — tudo para estar perto de seus novos companheiros. O diferente pode nos oferecer algo de valor imensurável. Seu novo lar já não era um lugar, mas sim eles.
Um adendo: Aonde isso vai nos levar?
Aos poucos, um detalhe chama a atenção: a ausência de humanos. Até mesmo a casa onde o gato morava — que parecia um verdadeiro santuário em sua homenagem, repleto de estátuas dele feitas por seu dono (ou, ao menos, é o que se supõe) — não há vestígios de presença humana.
Diante de tanta adoração, é difícil acreditar que ele tenha sido deixado para trás. Se foi, algo muito grave deve ter acontecido. Talvez o filme se passe em um mundo pós-apocalíptico, onde os humanos não sobreviveram. Essa é apenas uma hipótese, mas a ausência humana na narrativa nos leva a refletir sobre as consequências do desrespeito à natureza. Aonde isso vai nos levar? Sobreviver como sociedade só será possível enquanto união.
Sinopse
O filme apresenta uma estética visual deslumbrante e uma narrativa sem diálogos falados, evitando antropomorfizar demais os personagens. A narrativa se dá através da trilha sonora e dos sons ambiente e dos animais, além das emoções expressas em seus comportamentos.
A história acompanha a rotina de um gato solitário em um mundo distópico. Esse gatinho, assim como outros animais, é pego de surpresa por uma grande enchente que o obriga a sair da floresta onde vive, perde seu lar e é forçado a lutar por sua vida.
Referências
- Entrevista com o diretor neste podcast – Em inglês
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Comentários
Gostei muito da sua análise, Julia! Vi comportamentos humanos nos diversos animais do filme. A questão do salvamento de parte dos animais presos no barro, já ao final do filme, me chocou!!! Alguns cachorros tinham acabados de serem salvos, e reassumem um comportamento social, abandonando os outros, ao ver o coelho passar! Ali falou mais alto a Sobrevivência???? Cada um por si???? O aprendizado sobre viver em grupo, nem sempre é internalizado de forma perpétua!!! Corremos riscos!!! O filme deixa isso bem claro!!! Aí vem a pergunta: não se trata de um processo de SELECÇÃO NATURAL, e sim de um processo de SELEÇÃO ARTIFICIAL!!!!! Aquela mencionada em 1975 por Carl Sagan!!!! Seremos fortes o suficiente para resistir a ação global ambiental???