Clube do livro: “Véspera”, de Carla Madeira – Parte 3

Bom, seguimos com as nossas reflexões sobre o livro Véspera, de Carla Madeira. Hoje, vamos conversar sobre o poder do nosso nome e das histórias familiares. Nosso nome nos define? Sabemos que os dois irmãos receberam nomes difíceis de carregar, e que o estigma desses nomes teve impacto na vida familiar, na escola, na vida adulta e afetiva. Um nome não é só uma palavra. “Como uma palavra nunca é só uma palavra, a ela é dado ser poema ou cativeiro.” Esse é o tema do próximo texto da série: A história prévia que nos constitui / A nomeação simbólica.

ÍNDICE [VÁ DIRETO AO PONTO]

Nosso nome nos define? 

O que nos antecede nos habita:
A história prévia que nos constitui

Quando o nome é mais que um nome

“A descida até o lugar onde somos capazes de tudo é, por vezes, um desmoronamento lento misturado à banalidade dos dias. Ou abrupta avalanche”.

Nosso nome nos define?

Em Véspera, Carla Madeira apresenta a história de dois irmãos gêmeos que, ainda antes de nascerem, já carregam um peso simbólico: o da nomeação. A escolha dos nomes — Caim e Abel — não é aleatória nem inocente. Inspirados no mito bíblico, esses nomes já trazem consigo uma maldição silenciosa, uma história de rivalidade e tragédia que antecede qualquer gesto ou escolha dos meninos. Ao nomeá-los assim, os pais inscrevem os filhos em um enredo prévio, como se o destino já estivesse traçado. Ao longo da narrativa, vamos vendo como esses nomes não apenas identificam, mas moldam — e aprisionam — os gêmeos numa lógica repetitiva, em que a história parece condenada a se repetir.

O que nos antecede ainda nos habita

Carla Madeira, em “Véspera”,  costura, com delicadeza e precisão, a maneira como o passado insiste em marcar presença no presente. Na psicanálise, sabemos que o sujeito não nasce do zero: ele é atravessado por uma história que o antecede — pela linguagem, pelos traumas, pelas marcas familiares que, muitas vezes, ele sequer conhece por completo.

Antes mesmo de sabermos falar, já fomos falados. Isso quer dizer que já ocupávamos um lugar no desejo dos outros — dos pais, da cultura, da história familiar. Antes mesmo do corpo de um bebê estar formado, seus pais já imaginam e projetam como será sua personalidade: será estudios@ ou preguiços@ como o avô? Médic@ como a tia? Quem sabe artista, como a mãe sonhava desde pequena? Ou, pelo chute na barriga, será jogador(a) de futebol, ah, será!

Isso é ruim? Não! É a partir dessas inscrições anteriores que vamos nos constituindo como sujeitos. É como se nascer fosse descer por um tobogã e cair numa piscina cheia de histórias, desejo, ideias pré-formadas sobre nós… palavras! E vamos nadando nessa sopa de letrinhas, de alguma forma, recusando e escolhendo quais combinam mais com a gente — ou tentando performar dentro daquilo que esperam de nós. Muitas vezes seguimos repetindo algo de uma dor antiga, familiar, sem sequer saber ao certo de onde ela veio, mas sentindo suas consequências no modo como nos relacionamos, escolhemos, sofremos ou nos protegemos.

Conhecer essa história não é simples, nem garante uma solução imediata para os impasses da vida. Mas, quando podemos escutá-la — seja pela literatura, pela análise ou pelo encontro com o outro —, algo pode começar a se transformar. Porque, como lembra a própria narrativa de Carla Madeira, há dores que não passam, mas podem, aos poucos, encontrar lugar para ser elaboradas.

Quando o nome é mais que um nome

E um nome não é só uma palavra.” Carla Madeira nos lembra que a nomeação pode ser tanto poesia quanto cativeiro. Para a psicanálise, essa percepção é fundamental: o nome é o primeiro traço simbólico que nos é colocado — e carrega, junto dele, uma história que nos antecede.

Antes de sermos qualquer coisa, já somos nomeados. E essa nomeação não é neutra. Ela nos inscreve numa linhagem, num desejo, num enredo familiar. Um nome pode ser uma homenagem, uma reparação, uma esperança — ou uma condenação silenciosa.  Os dois irmãos de Véspera recebem nomes difíceis de carregar. Mas o que torna esses nomes tão pesados não é só sua sonoridade ou estranheza. É o que vem junto: a expectativa, a marca, o lugar que os pais (sem saber ou sabendo demais) atribuem aos filhos.

Na psicanálise, chamamos isso de inscrição no simbólico. Um sujeito só se constitui como tal ao entrar na linguagem — e a nomeação é a porta de entrada. Não escolhemos nosso nome, mas é a partir dele que passamos a existir para o Outro e, aos poucos, para nós mesmos. O problema é que, às vezes, esse nome não nos veste bem. Ele aperta, sufoca, prende. Outras vezes, ele nos protege, nos dá chão, nos conecta a uma história mais ampla.

O que Véspera nos convida a pensar é que não existe nome sem história. E, muitas vezes, é preciso percorrer essa história — com coragem, com delicadeza — para entender o que de fato estamos carregando quando ouvimos alguém nos chamar.

Conclusão

Em algum momento da vida, todos nos deparamos com a pergunta: quem sou eu, além do nome que me deram? E talvez a psicanálise não nos ofereça uma resposta definitiva — mas nos convide a escutar, com mais cuidado, a história que vem junto com esse nome. Porque só quando podemos reconhecer o que nos foi dado é que começamos, de fato, a escolher quem podemos ser.

Todos os textos dessa série:

Veja mais:

Outros livros, filmes e séries com a temática de relações conturbadas entre irmãos gêmeos.

Livros

  1. “O filho de mil homens” – Valter Hugo Mãe
    Romance que toca de maneira poética e profunda as questões da filiação, do desejo de nomear e ser nomeado, e do lugar que ocupamos (ou não) no desejo do Outro.

  2. “Nada se opõe à noite” – Delphine de Vigan
    Um mergulho na história familiar da autora, marcada por segredos e repetições transgeracionais. 

  3. “A chave de casa” – Tatiana Salem Levy
    Romance sobre identidade, herança, memória e a tentativa de compreender o lugar que se ocupa dentro de uma narrativa familiar.

  4. “O Deus das Pequenas Coisas” – Arundhati Roy
    A história de uma família indiana marcada por normas sociais e familiares rígidas. Os personagens vivem sob o peso de nomes, castas e expectativas — e tentam (às vezes tragicamente) escapar disso.

Séries

  1. “This Is Us” (2016–2022)
    Uma verdadeira tapeçaria emocional sobre a constituição dos sujeitos a partir da história familiar, dos traumas passados e do legado simbólico.

  2. “The Crown” (2016–2023)
    Embora fale de figuras públicas, é uma série profundamente marcada pela questão dos nomes, dos títulos e da posição no enredo familiar.

  3. “Maid” (2021)
    Trata da tentativa de romper ciclos familiares e construir uma nova narrativa para si.

Filmes

  1. “Incêndios” (D. Villeneuve, 2010)
    Uma obra-prima sobre a transmissão do trauma familiar, os filhos buscam reconstruir a história da mãe e se deparam com verdades devastadoras.

  2. “Precisamos falar sobre o Kevin” (L. Ramsay, 2011)
    O filme explora, entre outras coisas, a questão do lugar que uma criança ocupa no desejo da mãe.

  3. “A filha perdida” (M. Gyllenhaal, 2021)
    Uma reflexão sobre maternidade, legado e repetição. A história gira em torno daquilo que é transmitido (ou recusado) de mãe para filha, muitas vezes de forma inconsciente.

Autor(a)

Julia Maria Alves

Psicóloga (UFMG/2009) com especialização em Clínica Psicanalítica (IEC-PUC MG/2020) e Gestão de Pessoas (FDC/2012)). Hoje atua com Psicoterapia, Orientação Profissional de jovens e Orientação Vocacional na Aposentadoria.

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Autor(a)

Julia Maria Alves

Psicóloga (UFMG/2009) com especialização em Clínica Psicanalítica (IEC-PUC MG/2020) e Gestão de Pessoas (FDC/2012)). Hoje atua com Psicoterapia, Orientação Profissional de jovens e Orientação Vocacional na Aposentadoria.

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