Mentiras sinceras? Oras… “Quem nunca mentiu, que atire a primeira pedra!” Diante dessa afirmação, é certo que ninguém será apedrejado, pois todos, em algum momento, já mentiram. A mentira, de alguma forma, faz parte da experiência humana na sociedade.

Embora sejamos ensinados desde cedo que mentir é “errado” ou “feio”, a mentira tem uma função tanto social quanto psíquica. Muitas vezes, recorremos a ela para agradar ou proteger quem amamos, escapar de situações desconfortáveis ​​ou evitar sofrimentos. Manipulamos a realidade porque, em certos momentos, uma verdade “nua e crua” pode ser difícil de enfrentar. Optamos pelo caminho da fantasia porque ele nos oferece um rompimento com essas dificuldades — ainda que temporário.

No entanto, a mentira costuma ser malvista e, quando descoberta, pode gerar sérios problemas nos relacionamentos. Curiosamente, mesmo sabendo que nem sempre somos completamente francos com os outros, esperamos deles total sinceridade.

Entre a sinceridade ferina e a falsidade carinhosa, prefiro a última.
No jogo impreciso do amor, vale mais a intenção forjada do que a fúria da razão.
Portanto, entre a espada crua da verdade, mentiras sinceras me interessam
Cazuza

1º de abril, o bobo caiu!

Julgamos e punimos as mentiras com severidade, como se delas não compartilhássemos. Mas como somos contraditórios! Até mesmo criamos um dia especial para celebrar a mentira que tanto condenamos. O divertido ‘Primeiro de Abril’ funciona quase como um “segundo carnaval”, quando aquelas mentirinhas íntimas se fantasiam de verdade por um breve tempo, na inocente expectativa de “dar um susto”!

Nesse dia, podemos brincar com a fantasia e experimentar uma ‘realidade alternativa’ sem grandes consequências. Afinal, para voltar à realidade, basta afirmar que tudo não passou de uma “brincadeirinha”: “Primeiro de abril!!!” Uma leve escapada da verdade não faz mal… Ou faz?

Porém, nos outros 364 dias do ano, as mentiras costumam ser usadas como mecanismo de defesa, protegendo-nos de julgamentos, conflitos ou responsabilidades. Na prática, o mentiroso tenta transferir as consequências de suas escolhas para o outro ou para o futuro, enquanto a ilusão se sustentar. O que muitas vezes esquecemos é que, quando a mentira vem à tona, pode causar mais dor do que a verdade que tentamos esconder.

Parte de mim teme o que parte de mim!

A ‘verdade’ não é, necessariamente, o oposto da ‘mentira’. Do ponto de vista psicológico, a verdade é subjetiva, pertencendo ao sujeito em questão.

Há mais verdade na mentira do que se pode suportar. A mentira pode ser considerada inverídica quando pensamos no fato em si, mas importante e significativa quando pensamos no desejo ou a posição daquele sujeito. Ou seja, a mentira revela algo. Algo que não se concretizou e não real, mas que encontra nela uma representação possível. Ela denuncia os conflitos que o sujeito enfrentará para preservar sua autoestima e sua estabilidade psíquica.

Mentir não implica, necessariamente, em uma imoralidade. Muitas vezes, é um recurso psíquico para se defender de verdades que seriam insuportáveis ​​se fossem ditas de forma ‘nua e crua’. Afinal, imagina como seria se o outro soubesse tudo o que se passa dentro de nós — cada pensamento, dúvida ou impulso?

Nós mesmos vivemos em conflito com partes nossas e precisamos de formas de evitar contato com elas! A mentira pode ser um escudo contra essas facetas difíceis de enfrentar ou aceitar. Isso não significa que mentir seja o caminho mais saudável, mas revela algo essencial: toda escolha, seja consciente ou inconsciente, reflete aquilo que o sujeito consegue suportar naquele momento.

A função social da mentira

As mentiras podem ter a função de tornar a realidade menos frustrante ou evitar desconfortos sociais — como ocorre nessas “mentiras sociais”. As mentiras sociais são aquelas contadas para evitar constrangimentos, preservar relações ou tornar a convivência mais harmoniosa. São comuns no dia a dia e geralmente não têm a intenção de prejudicar o outro, mas sim de adequar a comunicação a normas sociais e expectativas culturais. Um exemplo clássico é quando elogiamos um presente que não gostamos ou dizemos que estamos bem mesmo quando não estamos. Embora pareçam inofensivas, essas mentiras revelam o quanto buscamos aceitação e evitamos conflitos, mostrando que a verdade, muitas vezes, é modulada pelas exigências da vida em sociedade.

[su_quote cite=”Noel Rosa – “Mentir (Mentira Necessária)“”] Saber mentir é prova de nobreza, pra não ferir alguém com a franqueza
Mentira não é crime! É bem sublime o que se diz, mentindo para fazer alguém feliz[/su_quote]

Entretanto, quando a mentira se torna o principal ou o único meio do sujeito lidar com a realidade, deixa de ser uma simples estratégia para evitar desconfortos, e passa a indicar um sinal de alerta.

Nesse contexto, a mentira pode indicar algum quadro patológico. Por exemplo, um quadro de mitomania (compulsão pela mentira, contada de forma consciente, que tem por objetivo a autoproteção ou, muitas vezes, o falseamento da realidade, de maneira a fazê-la parecer melhor.).

Em outros casos, a mentira adquire um caráter mais instrumental e passa a ser um recurso usado para atingir objetivos específicos, seja para obter vantagens, manipular uma situação ou enganar os outros em busca de algum benefício próprio. Ou seja, essa prática é deliberada para prejudicar alguém, com a intenção de causar dano, seja emocional ou material, aos outros.

Conslusão

Do ponto de vista psicanalítico, a mentira nunca é um fenômeno isolado, mas sempre carrega significados mais profundos sobre o sujeito. Cada mentira que contamos revela algo sobre nossa psique, nossas dinâmicas internas, desejos não expressos ou até aspectos de nós mesmos que preferimos não confrontar. A mentira, portanto, não é apenas uma distorção da realidade, mas uma representação do que o sujeito é incapaz de dizer ou reconhecer de maneira consciente. Ela aponta para os lugares sombrios do inconsciente, onde se escondem os medos, inseguranças e tensões que, muitas vezes, moldam a forma como percebemos o mundo ao nosso redor.

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Imagens de: Dave Pollot Art
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Adaptação: Equipe Diálogo Psi

Autor(a)

Julia Maria Alves

Psicóloga (UFMG/2009) com especialização em Clínica Psicanalítica (IEC-PUC MG/2020) e Gestão de Pessoas (FDC/2012)). Hoje atua com Psicoterapia, Orientação Profissional de jovens e Orientação Vocacional na Aposentadoria.

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Julia Maria Alves

Psicóloga (UFMG/2009) com especialização em Clínica Psicanalítica (IEC-PUC MG/2020) e Gestão de Pessoas (FDC/2012)). Hoje atua com Psicoterapia, Orientação Profissional de jovens e Orientação Vocacional na Aposentadoria.

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Comentários

4 Comments

  1. Lariça Mendes 17 de abril, 2015 at 12:15 - Reply

    Adorei! Adorei! Muito bom o texto! Compartilhando!

    • Diálogo - Espaço de Psicologia 3 de julho, 2016 at 17:49 - Reply

      Fico feliz, Lariça! Obrigada!

  2. Patricia 3 de maio, 2015 at 11:22 - Reply

    Deteeeeesto mentiras =((((((
    É terrível quando mentem pra gente, faz a gente se sentir pior quando descobrimos a verdade, doi duas x
    só me consola saber que quem mente, mente primeiro para si
    beijinhos

    • Diálogo - Espaço de Psicologia 3 de julho, 2016 at 17:49 - Reply

      Você tem razão Patrícia! Ninguém gosta né? Espero que o texto te traga uma boa reflexão! <3

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