Sobre o livro “Sobre os ossos dos mortos”

Sobre os Ossos dos Mortos” é uma ficção contemporânea da polonesa Olga Tokarczuk que venceu o Nobel em 2018. O livro é classificado como um “thriller ecológico” ou até um romance filosófico, o que já demonstra o quão inusitado é. Discute temas como o mundo natural, envelhecimento, determinismo, loucura, injustiça e direitos dos animais. 

A história parte de um crime para se converter em uma espécie de ‘suspense existencial’. Somos convidados a acompanhar a investigação dos assassinatos, mas o foco não está no desenrolar investigativo, e sim na voz narrativa de Dusheiko que nos apresenta um mundo introspectivo que beira o realismo mágico, a partir de sua vida cotidiana e seu clamor por justiça.

O livro “Sobre os Ossos dos Mortos” é visto por alguns como um thriller, por ter um mistério envolvendo assassinatos em série, mas não se encaixa perfeitamente nesse gênero. Quem busca uma narrativa de suspense pode se decepcionar. Na verdade, é muito mais introspectivo, é como se estivéssemos ouvindo as conversas mentais dessa senhora, bastante excêntrica, inclusive. A Sra. Dusheiko é vegetariana e defende com fervor os direitos dos animais, sendo radicalmente contra a caça, legal ou ilegal.

Os direitos dos animais e a exploração da natureza

A narrativa começa com a morte de um vizinho próximo, conhecido pela protagonista como “Pé Grande”. Um aspecto peculiar da Sra. Dusheiko é que ela prefere dar nomes às pessoas de acordo com suas impressões pessoais, em vez de usar seus nomes reais e burocráticos. Ela acredita que limitar alguém a um único nome é reducionista, e essa visão peculiar reflete sua forma única de enxergar o mundo.

A cena em que o corpo de Pé Grande é encontrado é descrita de maneira perturbadora. A essa morte (aparentemente acidental) seguem-se outras, cada vez mais bizarras. A partir desse momento, a protagonista passa a acreditar que há um movimento de vingança. Ela vê indícios de que os animais estão se revoltando e retaliando aqueles que os caçam.

O enredo é, à primeira vista, absolutamente comum em histórias de mistério, mas o pano de fundo é uma crítica à relação do ser humano com a natureza, em especial sobre como exploramos e tratamos os animais. A autora explicita a relação utilitarista e descartável que se reflete na banalização da crueldade do homem, como se os animais fossem meros objetos à disposição.

A astrologia e o determinismo

À medida do desenrolar da história, percebemos a Sra. Dusheiko como uma mulher introspectiva, fria e reservada. Embora a narrativa traga seus pensamentos sobre as mortes e as questões do vilarejo, a conexão emocional com a personagem é difícil, mesmo para quem compartilha de suas crenças pessoais. Essa distância emocional é, talvez, proposital e importante para o desenrolar do enredo.

Em diversos momentos, a astrologia é usada para guiar a narrativa e aprofundar a visão introspectiva do livro. Apesar disso, gosto de pensar que são apenas as ideias confusas na mente da narradora, apaixonada por astrologia.

Para Dusheiko, tudo pode ser explicado pela forma como os astros se alinham. A astrologia é capaz de explicar o inexplicável, o que nos faz questionar, ao longo da leitura, onde está aquilo que nos faz humanos — nossa dimensão que resiste às determinações do destino. É como se a história mantivesse uma outra narrativa em paralelo, por trás do texto: uma reflexão profunda a respeito do livre-arbítrio e da determinação.

Os animais e os envelhecidos: Descartáveis?

Uma de suas reflexões aborda o envelhecimento e a transitoriedade da vida:

E então algo acontece no meu corpo, os ossos começam a doer. É uma dor desagradável, revoltante- essa é a palavra que eu uso. É constante, persiste por horas, às vezes dias. Não há como se esconder, nem remédio ou injeção para aliviá-la. Tem que doer, do mesmo jeito que um rio precisa fluir, e a chama queimar. Ela me lembra, cruel, que sou composta de partículas de matéria que morrem a cada segundo. Alguém consegue se acostumar com isso? Aprender a viver com isso assim como as pessoas que vivem na cidade de Oswiçcim (que abrigou Auschwitz) ou Hiroshima, sem pensar jamais no que aconteceu lá no passado. Elas simplesmente vivem suas vidas.”

Além de falar sobre a falta de respeito com a natureza e os animais, é nítida a comparação com a “descartabilidade” do sujeito envelhecido. Assim como os animais que servem a um capricho dos seres humanos, os idosos já foram úteis a uma lógica capitalista, até não servirem mais. Tornaram-se um fardo, um incômodo. Nesses momentos, tem destaque temas como o envelhecimento do corpo, a solidão e a loucura. Por exemplo, nesta passagem:

Quando chegamos a uma certa idade, precisamos entender que as pessoas sempre ficarão irritadas conosco. Antes, nunca tinha percebido a existência ou o significado de gestos como acenar com a cabeça rapidamente, desviar o olhar, repetir “sim, sim”, feito um relógio. Ou checar as horas, ou esfregar o nariz. Mas agora entendo muito bem que esse teatro todo só quer expressar uma simples frase: ‘Dá um tempo, sua velha!‘”.

Com um tom frequentemente pessimista, o romance tem a marca de uma introspecção profunda e reflexiva. Embora tenha elementos de mistério, seu foco está nas questões existenciais e nas críticas sociais que emergem lentamente, o que revela um enredo que vai muito além de um simples thriller.

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Autoria do texto
Júlia Maria Alves
quem somos julia

Psicóloga graduada pela UFMG (2009), com especialização em Clínica Psicanalítica na atualidade pela PUC-MG (2021) e em Gestão de Pessoas pela Fundação Dom Cabral (2012). Atua com atendimento clínico e orientação profissional.

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