Dia de Finados

No próximo dia 2 celebramos o Dia de Finados, que é, sobretudo, um momento de exaltar aqueles que cruzaram seus caminhos com os nossos e deixaram saudade. Apesar de ser uma data originada nos ritos da igreja Católica, também é celebrada por outras religiões e sociedades. A título de curiosidade, o Dia de Finados foi instituído pela primeira vez na França, no século X. Quando no dia 2 de novembro de 998, o abade Odilo de Cluny sugeriu que as pessoas se dedicassem a orar pelas almas dos que morreram.

No Brasil, o Dia de Finados é um dia de pensamentos naqueles que partiram e, também, de valorização de suas vidas. Nesse sentido, esta é uma data que reedita a morte. Especialmente para aqueles que ainda têm presente a dor do luto e da perda, com todos os sentimentos que os acompanham. Enquanto, para outros, essa dor já se transformou em saudade que levam consigo vida afora.

“E, quando a doença encontra um ser humano, ela produz uma melodia única, que se chama sofrimento. As doenças se repetem nas pessoas. Mas o sofrimento, não. O sofrimento é único, cada um tem o seu.”

Ana Claudia Quintana Arantes | TEDxFMUSP [1]

A morte e o Luto

Por mais dura que seja essa constatação, a morte e o luto fazem parte da vida. Eles são uma dimensão da nossa condição humana, e cada um de nós reage à perda de maneiras distintas. Ou seja, não existe um jeito ou tempo certo para superar: cada pessoa vai passar pelo sofrimento de forma particular. Normalmente, o primeiro ano é o mais difícil de se atravessar, por se tratar de um primeiro ciclo vivido dessa ausência.

Freud escreve alguns textos sobre morte e luto, especialmente sobre a transitoriedade e a necessidade de que o homem compreenda que as coisas, pessoas e situações são passagens. É preciso renunciar a algo que passou, que perdemos ou não foi eleito em nossas escolhas para, assim, rumar no sentido a novas possibilidades. Dito de outra maneira, para deixar ir, é preciso realizar um trabalho de luto, para assim poder eleger novos objetos [2].

Todavia, quando não atravessamos o luto, não abrimos espaço para um ‘algo novo’.

O trabalho do luto se dá, antes de tudo, pela conscientização de uma perda. Devido à pandemia, as limitações e quase inexistência dos rituais de velório e sepultamento escancararam a importância psicológica destas cerimônias na vivência e atravessamento do luto. Assim como, também, demonstrou a dureza dos processos de enfrentamento do luto em tragédias.

“Aí você passa para a dimensão emocional, que é um outro tom, bem mais complexo. Medicina é simples, gente boa. O difícil é a psicologia. Cada ser humano é único, e vai expressar nesse momento que tem consciência da sua ‘finitude’. Porque todo mundo aqui sacou já que a gente vai morrer, alguém está chocado em saber disso? E quando a gente fala da dimensão emocional, vem todo esse peso de entender… de buscar. Por que está acontecendo isso?”

Ana Claudia Quintana Arantes | TEDxFMUSP [1]

O menosprezo ao luto

Este ano especialmente, será um dia de Finados marcado pela saída de tempos sombrios. Quando quase 700 mil pessoas perderam suas vidas pela pandemia de COVID 19. E quando milhares de famílias tiveram seus lutos invadidos [e até inviabilizados] pelo descaso das autoridades, desrespeito, chacotas e violências de diversos tipos. Esta combinação de ‘tragédia’ e ‘descaso’ tornou os lutos ainda mais difíceis de serem superados.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) [3] estima que 14,9 milhões de pessoas faleceram por causa da Covid entre 1º de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2021, sendo que o Brasil foi um dos países a registrar mais vítimas no mundo. Essas mortes foram a combinação cruel de uma doença grave e inédita, com o descaso de autoridades e as desigualdades históricas. Pois, veja bem, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) morreram mais pretos e pardos do que brancos. Esse dado revela muito sobre nossa sociedade.

Embora muitos acreditem que “somos todos iguais”, essa assertiva é injusta e falsa. Os grupos na sociedade são afetados de formas desiguais __  assim como cada indivíduo de um mesmo grupo é afetado de maneiras distintas. O acesso desigual à saúde e ao cuidado médico tem um impacto direto no número de mortes nesses grupos. Assim como, também, se reflete na vacinação, ou seja, na garantia de se proteger do adoecimento.

Na prática, isso quer dizer que, para determinados grupos, as condições de vida afetam de forma a torná-los mais expostos ao adoecimento e à morte. O que, por sua vez, impacta na relação com o luto e a morte. Somos diferentes e vivemos realidades muito diferentes. Vivemos pandemias diferentes e nos enlutamos e vivenciamos essas mortes de maneiras diferentes.

Reflexão e saudade

Em resumo, não há alternativa, vivenciaremos perdas significativas ao longo da vida. Assim como vamos experienciar as dores da perda e atravessar seus lutos. O luto é um processo necessário para a retomada da vida e da saúde mental. Então, está tudo bem se sentir triste, mas ao invés de “morrer de saudade”, que possamos encontrar um caminho para “viver a saudade” e seguir vivendo!

Mas, acima de tudo, compreendemos que o luto é um direito individual e o respeito ao luto é um dever e um pacto coletivo. Que neste dia de finados possamos, enquanto sociedade, encontrar caminhos para ‘deixar ir’ este momento tão sombrio da nossa história e construir algo novo, que respeite o pacto democrático e social.

Referências

[1] “A morte é um dia que vale a pena viver”, Ana Claudia Quintana Arantes | TEDxFMUSP. << Disponível aqui >>.[2] “Como acontece o luto?“, Christian Dunker | Falando nIsso 210 << Disponível aqui >>[3] “14.9 million excess deaths associated with the COVID-19 pandemic in 2020 and 2021“, World Health Organization |  << Disponível aqui >>
4. FREUD, S. “Luto e melancolia” (1917). In: ______. A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
5. GABRIEL, MAGALHÃES, “Vivências de luto em tragédias e seus desdobramentos em práticas sociais<< Disponível aqui >>.

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Autoria do texto
Júlia Maria Alves

Psicóloga graduada pela UFMG (2009), com especialização em Clínica Psicanalítica na atualidade pela PUC-MG (2021) e em Gestão de Pessoas pela Fundação Dom Cabral (2012). Atua com atendimento clínico e orientação profissional e gestão de carreira.

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