Anna O. é o pseudônimo de Bertha Pappenheim (1859-1936), paciente atendida pelo médico Josef Breuer entre 1881 e 1883. Breuer usou este nome para proteger sua identidade na publicação do livro Estudos sobre a Histeria, escrito em parceria com Sigmund Freud. O diagnóstico de Anna O. foi histeria, tratada por Breuer por meio de hipnose e do método catártico.
“O caso da Srta. Anna O.” detalha os sintomas, a evolução e o acompanhamento de seus atendimentos. É considerado o caso inaugural da psicanálise, servindo de base para reflexões futuras de Freud. Curiosamente, foi a própria Bertha quem nomeou o tratamento como “talking cure” (cura pela fala) e o humorístico “chimney sweeping” (limpeza da chaminé)(FREUD, 1985, pág.53), pois, ao falar livremente e sem interrupções, conseguia aliviar seus sintomas e “limpar” suas emoções reprimidas.
Para melhor compreender essa história, dividimos o texto em duas partes:
1) Quem foi Anna O., a paciente?
2) Quem foi Bertha Pappenheim, a mulher?
Quem Foi Anna O.?
O Caso da Srta. Anna O.: Um Marco na História da Psicanálise
Anna O. (Bertha Pappenheim) tinha 21 anos quando começou a ser tratada por Josef Breuer, renomado médico vienense, entre 1881 e 1883. Apenas em 1895 o caso foi publicado em Estudos sobre a Histeria, em coautoria com Sigmund Freud.
Bertha, uma jovem culta e poliglota, fazia parte de uma família judia ortodoxa de Viena e vivia sob o rígido controle dos pais, sem permissão para dançar, ir a bailes ou escrever. No início do tratamento, estava isolada em seu quarto, sofrendo diversos sintomas desde a morte de seu pai.

O pai adoeceu gravemente de tuberculose, assim passou dias e noites ao seu lado. Durante esse período, desenvolveu uma série de sintomas: tosse intensa, distúrbios da visão, audição e fala, dificuldade em ingerir alimentos, paralisias, lapsos de consciência e alucinações. Breuer diagnosticou o quadro como histeria, uma condição enigmática na era vitoriana, marcada por sintomas variados e difíceis de compreender.
O Tratamento e a “Cura pela Fala”
Contrário ao que muitos pensam, Freud não tratou diretamente de Anna O.; ele atuou como uma espécie de “supervisor do caso”, ouvindo os relatos e discutindo o progresso e a teoria com Breuer, que fazia as visitas. Durante o tratamento, Anna apelidou o método de “talking cure” ou “cura pela palavra,” referindo-se ao alívio que sentia ao falar livremente, o que Breuer notou que ajudava a aliviar alguns sintomas, embora outros surgissem em seu lugar.
Inicialmente, Freud e Breuer tinham visões diferentes sobre a histeria. Freud acreditava na importância da sexualidade na origem dos sintomas, algo que Breuer não aceitava. A relação entre paciente e médico trouxe à tona sentimentos ambíguos, levando Freud a definir o conceito de transferência—um vínculo emocional que o paciente projeta no terapeuta.
O Desfecho
Em certo ponto, Anna começou a apresentar sintomas intensos e afirmou estar grávida de Breuer. Embora sem confirmação histórica, o episódio levou Breuer a abandonar o caso, recomendando que ela fosse internada em uma clínica. Anna, porém, não encontrou alívio completo nesse novo tratamento, mas desenvolveu o hábito da escrita, que se tornaria central em sua vida.
A história de Anna O. é apenas um recorte da vida de Bertha Pappenheim, que foi além de seu papel como “caso clínico”. Ela se tornou assistente social, escritora e líder do movimento feminista, deixando um legado importante para a história da psicanálise e dos direitos das mulheres. Vamos falar um pouco mais sobre sua vida a seguir.
Quem Foi Bertha Pappenheim?
A Vida da Mulher por Trás do Caso Anna O.
Bertha Pappenheim nasceu em 27 de fevereiro de 1859, em Viena, na Áustria, como a terceira filha de Recha e Zygmunt Pappenheim. Suas duas irmãs mais velhas faleceram na infância, e Bertha cresceu com o irmão mais novo em uma rica família judia que atuava no comércio de grãos. Os Pappenheims eram conhecidos pelo conservadorismo e pela devoção à ortodoxia judaica, e educaram seus filhos dentro desses valores.
Bertha era uma jovem brilhante, com uma impressionante rapidez de compreensão, intelecto poderoso e um notável talento poético. Dotada de uma imaginação rica, possuía também um senso crítico aguçado, sendo movida por argumentos lógicos e marcada pela solidariedade e bondade. O início do movimento feminista (Frauenbewegung) na época teve grande influência em sua vida, despertando nela o desejo de lutar por direitos e igualdade.
Após a morte de seu pai, em abril de 1881, Bertha passou a sofrer crises intensas e diversos sintomas, chegando a esquecer sua língua materna e conseguindo se comunicar apenas em inglês. Seu tratamento com Josef Breuer durou até junho de 1882, quando foi encaminhada ao Sanatório Bellevue, onde permaneceu por cinco meses. Em agosto de 1883, Breuer a visitou novamente, e até 1888 há registros de outras internações no Sanatório Inzersdorf, na Áustria.
Transformação e Carreira como Escritora e Ativista
A vida de Bertha começou a se transformar em 1888, quando publicou anonimamente seu primeiro livro de contos infantis, Kleine Geschichte für Kinder (ou Pequenas Histórias para Crianças). Esse marco parece ter representado uma virada significativa, pois, a partir de então, não há mais registros de sintomas. Bertha passou a se dedicar à serviço social, ao feminismo, e se destacou como escritora e tradutora. Tornou-se uma importante figura no movimento feminista, mostrando que sua vida foi muito além do papel de “paciente” e deixando um legado de coragem e inspiração.

Bertha Pappenheim foi uma pioneira na assistência social e uma defensora incansável dos direitos das mulheres e crianças desamparadas. Considerada a primeira assistente social da Alemanha, dedicou grande parte de sua vida a acolher jovens judias pobres e órfãs, muitas vezes vulneráveis ao tráfico e à prostituição. Seu trabalho foi tão significativo que a Alemanha criou um selo comemorativo em sua homenagem.
Escritos e Contribuições Literárias
Bertha deixou uma obra extensa e diversa, incluindo contos, relatos de viagens, artigos, orações e cartas. Ela também escreveu livros e artigos sobre temas como educação, feminismo e o tráfico de mulheres, além de traduzir obras do inglês, ídiche e hebraico para o alemão. Seu segundo livro, In der Trödelbude (ou Na Loja de Objetos Usados, em tradução livre), de 1890, foi publicado sob o pseudônimo masculino Paul Berthold, com histórias que remetem ao tempo em que foi tratada por Breuer. Entre suas publicações mais conhecidas está Sisyphus Werk (ou O Trabalho de Sísifo), onde discute o impacto do baixo nível educacional na pobreza das meninas judias.
Ideais e Ativismo Feminista
Bertha foi uma forte defensora do movimento feminista, lutando pela igualdade política, educacional e econômica para as mulheres judias. Em 1904, fundou a primeira associação alemã de mulheres judias, o Bund Deutscher Frauenvereine, em Berlim, além do jornal da liga, o Blätter des Jüdischen Frauen. A organização trabalhou para reforçar a proteção legal das mulheres e oferecer oportunidades de emprego, promovendo a realização pessoal e independência financeira. Contribuiu ainda com artigos e pesquisas sobre as condições de vida das mulheres vulneráveis, como prostitutas judias e mães solteiras. Em 1907, construiu um “Lar para Meninas”, que oferecia acolhimento e formação profissional a jovens judias marginalizadas pela sociedade.
O feminismo e a psicanálise foram movimentos revolucionários nascidos no século XIX, ambos abrindo espaço para a expressão das experiências femininas. Bertha Pappenheim, com sua trajetória extraordinária, teve papel na construção dessas duas linguagens transformadoras, utilizando sua voz para desafiar estruturas e criar novas oportunidades para as mulheres.
Sugestão de leituras / Biografias:

1) Sigmund Freud e Anna O. A vida de Bertha Pappenheim. BRENTZEL, 2004
2) O Enigma de Anna O. uma Biografia de Bertha Pappenheim. GUTTMANN, 2001.
3) Estudos sobre a Histeria. Freud e Breuer, 1895.
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